segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Trechos


Vila dos Confins 
Mário Palmério (1956)


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"O Carrapato apareceu de repente, brotado no meio do cerrado ralo. Uma, duas casas de telha. O resto, rancharia miúda de coqueiro buriti.
Nenzinho bateu na capota de aço da camioneta:
- É aquela casa ali, doutor. Às direitas - aquela com o cachorro na porta."

"Se a Vila dos Confins dava aquela primeira impressão de pobreza, o Carrapato lembrava miséria e abandono. Difícil topar, naquele fim de mundo deserto, coisa mais triste e mais sem vida.
O sol caía de ponta, brutal. Entorpecia e queimava tudo. A areia era polvilho de espelho socado no pilão. O ar, a gente podia vê-lo mover-se - lesma amarela, quente, pegajosa, a arrastar-se por sobre as ruas e telhados.
O deputado passou pelo cachorro deitado à porta da casa do Nenzinho. Todos os outros passaram, passou o dono também - e o pobre continuou fundido ali na areia borralhenta. Mal abriu e azarolhou os olhos embaçados e meio arregaçou as pelancas da boca. Mas antes não tentasse sorrir: comentário cruel do Aurélio..."
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"Nenzinho falara e saíra para a rua. A mulher, calada, olhos fincados no chão; o Aurélio e o João Soares, cansados, sem assunto.
Pela janela aberta, Paulo via a rua; a fieira dos ranchos morria na cerca de pau roliço, tocos deitados, arrumados mal-e-mal. Pássaros... Não, aquilo nada tinha que ver com passarinho. Dois anuns agourentos, isto sim, trepados na caveira de boi fincada no moirão alto da porteira. A caveira estava ali para espantar a peste e o mau-olhado; mas aquelas duas assombrações - pretos os olhos, preto o bico, cabeça, asas, pés, tudo, tudo preto - inutilizavam o exorcismo. Fiasco de caveira: piavam agora os dois agourentos, como que chamando pela morte, perdidos de saudades dela. Não, anum não era passarinho: assombração mesmo, como os morcegos.
Encostados à cerca, os bois de carro cumpriam castigo, atrelados dois a dois, muda fila imóvel em frente ao cargueiro de sal; babavam, babavam... - quem sabe se a baba apagava o fogo que lhes subia pelas pernas, vindo do braseiro do chão!"

"(...)o sol multiplicando-se em cada um dos grão de malacacheta moída da areia da rua, para mais abrasar, mais centelhar, mais castigar. E, bem em frente à janela, os guarda-chuvas invertidos das folhas secas do mamoeiro, o pendurado frouxo da meia-duzia de mamões encardidos - pelancudos quem nem peitos de índia velha."

"Um bater de aflito de asas chamou a atenção do deputado. Era o frango índio, com o talho fundo no pescoço de penas arrancadas, pingando sangue no prato de folha. A crista branca, descarnada, as pernas ainda pedalando soltas... Frango ao molho pardo! Não havia escapatória: teria mesmo de agüentar aquele horror do Carrapato até a tardinha..."

(...) O capetão sapateava no cocoruto da cabeça, pulava da nuca para a sobrancelha, num pulo só. Não, não era apenas um: eram muitos os demônios - demônios machos, demônios fêmeas; e se agarravam, casais trocando-se, derrubando-se: bêbados, bêbados, a fazerem desatinos por cima da fofice dos miolos. Rápidos, espojavam-se, esfregavam-se, e daquela sem-vergonheira nasciam enxames de capetinhas - já de rabo, já peludinhos, de chifre e fogo nos olhos. Por isso o zumbido de abelha arapuá nos ouvidos. O corpo inteiro, agora - a capetada descera pelas veias, talvez pelos corrimãos dos nervos - as costas, as pernas, as solas dos pés: tudo pegando fogo... O sangue queimava, corria em labaredas... tudo ardia, estralava, sacudia, ameaçando desabar. Bombeiro, bombeiros! O tio Aurélio, de capacete, de óculos, mangueira comprida na mão; João Soares, Seu Iziquia, Seu Candinho... O novato sempre falante, dava ordens, comandava: "- Água benta, gente! Água benta!" Água benta, fria, gelada, escorrendo pelos cabelos,  pela cara, pelas costas. Friagem de gelo - mas os demônios fugiam! (...)girando de baixo pra cima: todo mundo de ponta-cabeça, sem cair: as panelas, o leite, o requeijão - até o frango índio de pescoço pelado, e o prato cheio de sangue. Força centrífuga."

"Quando o tio Aurélio gritou, já era tarde: o sobrinho caía de lado, as costas perdidas do apoio da quina do assento. O corpo escorregou e rolou, e Paulo despencou-se de bruços, batendo com a cara no chão de terra da cozinha." 

=== xx ===

Trechos dos capítulos 5 e 6 (São Paulo: Abril Cultural, 1983)
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