Clei de Souza Pereira
Poeta e letrista paraense, professor graduado (bacharelado e licenciatura) em letras pela Universidade Federal do Pará.
(Poemas extraídos na íntegra de publicações do autor)
ANTITEMPLO
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
Ø Pro Evandro
antes um tapa cheio de ódio
que um beijo vazio de paixão
Ø Antitemplo
quando ando nessas ruas
por todos abandonadas
em madrugadas sem céu e sem lua
nem Deus nem Diabo nem nada
eu me sinto num antitemplo
onde o tempo escorre calado
num compasso de ritmo lento
só o vento vagueia ao meu lado
nem puta ladrão ou assassino
encontro nesse meu caminho
só encontro num canto um mendigo
mesmo ele está acomodado
veio aqui pra ser esquecido
não ser no seu sonho incomodado
o mundo se encontra dormindo
só eu perdido e acordado
se de repente uma chuva aparece
não é de lua cheia que lava
é uma magra e longa que desce
feito a dor de uma lua minguada
neste antitemplo comungo
com os gatos e o camundongos
e com as almas penadas que vejo
e vendo-as assim as invejo
pois não carregam do corpo
o peso.
****************
Ø no meu corpo jogam
a erosão e eros
num espamo
o agora já era
efêmera carne
reGALA-se a fúria
ante a vigília dos corvos
ejaculo
e tudo é já
coágulo
Ø O Espelho
ela ante o espelho
olha-o olho no olho
reflete o seu conselho
O EVANGELHO É O NOVO
o tempo para o espelho
é um tosco espantalho
ou corvo curvo e velho
com olhos de grande escárnio
jogo de versa e vice
o ser assim invertido
a essência na superfície
por dentro apenas vidro
mas um dia afinal
uma dúvida angustiante
foi crescendo em sua mente:
se um era quente
o outro era frio
se um era gente
o outro era só vidro
então naquele instante
sentiu-se ela perdida
qual era o real?
qual só refletia?
teve ela um repente
como quando a gente sente
que se está bem diante
daquele que nos mente
foi um soco um estrondo
e sete anos de azar
mas o espelho se quebrando
pode ainda se vingar
eram cacos e um vermelho
confundidos no espaço
não suportou ela ao vê-lo
também ver-se em estilhaços.
Ø Esboço
para Alê
em desvelar-te
toda escrita é risco
e por ti me arrisco
os braços abertos ante o abismo
em reter-te na retina da página
está todo o meu esforço
mas no dizer o indizível de tua carne
todo verbo é apenas esboço
tocar neste teu mistério
com o peso das palavras
é atirar pedras
no escuro do poço
****************
Ø vejo a grávida
nela
duas vidas umbiligadas
casa de invisíveis vigas
que de dentro pra fora
se faz erguida
mas não uma casa reta
sólida
masculina
e sim outra
de formas curvas
fêmeas
LÍQUIDAS
mãe e cria
mais que o mar
no peixe emaranhado
mais que o aconchego de uma casa
em noite de chuva
morador e morada enamorados
como se enamoram mão e luva
Ø Inverno
para Ruy Barata
a cor que não grita
a luz que não cega
o dia apenas
sugerido
sobre o céu cinza
apocalíptico
um sol elíptico
seu silêncio anunciava:
ela vem vindo
vagas no cais se atiram
e o vento cavalga na avenida
anunciando o vaticínio:
ela vem vindo
ei-la caindo
vociferando a voz
de um deus já quase extinto
lua líquida língua
é muda aos ouvidos desumedecidos
e seca aos impermeabilizados espíritos
chuva
multivozes que gritam em coro uníssono
evocam outros tempos
uma outra infância
ameaçam consumar
uma profecia de vingança:
transformar o concreto em líquido
afogam-se cérebros
afunda-se o asfalto
rio e rua de novo unidos
transborda-se a velada náusea
a cidade assim em si vomita
e no gosto do esgotos
lava seu rosto
dos franceses eufemismos
-chuva-
naufraga
ainda que por um instante
o inferno moderno
no inverno de dantes
Ø Rio rumor
para Raul Bopp
o rio sabe
(quem dera todo homem o soubesse)
o não saber
(quando um encontro acontece)
a margem onde se termina
e o outro começa
o rio sabe
(todo homem o soubesse quem dera)
que o ser é a água do agora
mas que é também
a do que há de vir e a do que já fora
o rio sabe também do homem
para quem o rio é afinal
só água entre duas margens sobre um perau
contra esse homem, sabe ele
que sob a sua pele
morna e macia
o olho do invisível
espreita a vagina do dia
o rio sabe desse homem
que não sabe
que um rio sempre
retorna à nascente
como encontra a outra ponta
a boca da serpente
o rio sabe
em sua lenta luta
que um rio também fala
e se faz ouvir
no que cala
no que nega
no que não se navega
na água que se amarga
no milagre que não se pesca
para além das horas de heráclito
o rio
(viajante e estrada)
sob a vulva da madrugada
é eterna e noturna norato.
Ø Um caminho no caminho da pedra
Para as grandes pedras do sul do Pará
não quero o caminho
e seu sim fácil
frágil
flácido
quero a pedra
o não que nela habita
o risco do tropeço
ou do itinerário interdito
quero o não da pedra
que
(pra além das vias)
no meio da pedra há um caminho
penetrar o iné/dito
como ter o sim de um mulher difícil
****************
Ø eros e thanatus
o amor amortece a morte
o amor tece a morte
a morte amor tece
--------------- xxxxxxxxxx ---------------
MARSUPIAL
>> Publicação: ABUSO Produções – Editor: MARCELO MARAT (Travessa Lomas Valentinas, 1839, Marco, Belém-PA – 66087-440)
Ø O cio da sede
a sede ensina
o caminho das águas.
Ø Antibomba
O poema é uma antibomba,
Palavra-ave louca, suicida.
O risco não é não matar ou não fazer ferida,
O risco é não inventar novos mundos
E novas vidas.
Ø Amorumano
Fosse eu um deus
Ou um vampiro
Diria:
O meu amor por ti
É pela eternidade afora;
Mas o meu amor é de homem
E nele tudo grita:
Agora!
Agora!
Agora!
Ø Poema para minha miopia
Meu olho luta com a luz
ela quer o mundo claro
ele não
e entre o claro e o escuro
já não me desespero
miopia
é devolver ao mundo
o mistério.
P.S.: No original segue o poema “antitemplo” (já postado no livreto homônimo), ilustrado numa HQ com desenho de E. Thomaz e roteiro de M. Marat, o que, futuramente, se encontrará devidamente postado neste blog.
Ø Poema para minha fraca memória
sempre que eu te reencontrar
e não lembrar de ti
faça como eu que não me ofendo
nem me desaponto
pense que emoção toda vez
ser o nosso primeiro encontro.
Ø Carnívoro
este corpo e estes olhos
que um dia a terra há de comer
ainda hão de comer muitos corpos.
****************
Ø toda palavra é puta
o poema a todos se dá
mas poucos ele beija
na boca.
Ø Cacos
um copo pela metade
numa mesa abandonado
um poema inacabado
cinzas e baganas num cinzeiro
uma foto amarelada
uma carta no fundo da gaveta
quanta tragédia desenganada.
Ø Último desejo
todo beijo que seja
com a força do derradeiro
pois a morte se esconde na vida
e os beijos (desde o primeiro)
já escondem consigo a despedida.
EROSÃO DAS HORAS
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
dedicado
a Aquiles e Ícaro
Ø Auto-retrato
sou estúpido
violento
fui forjado nas matilhas
por isso caminho por entre as flores
preciso aprender das suas ternuras
Ø Poema para o sonho de uma amiga
o sono esconde o sonho
velado pela volúpia
a pele por fora
em repouso
o devaneio por dentro
em movimento
e gozo
eu feito louca vaga
indo e vindo
indo e vindo
sobre tua vulva
estrondo e espuma
entre tuas coxas
mundo tumulto de línguas
confusão de salivas
suores
arfares
odores
morna e úmida fúria
das carnes em luta
mas a noite se esvai no dia
o sonho evanescido
o corpo acorda lívido e ávido
como se tudo tivesse havido
Ø Sonho
nada de sonhos fáceis
nem sonhos fósseis
só será sonho este que faço
no verso e no braço
sobre esses dias difíceis
Ø Poema extraído de uma afronta
não olho
(que não sei só olhar)
não falo
(que não sei só falar)
não toco
(que não sei só tocar)
se não for para ser tudo
me deixe só...
quieto...
mudo
Ø 2º poema para o sonho de uma amiga
tu me disseste que para o sonho
que tiveste comigo não há poema
quer dera eu fizesse um poema
da mesma matéria do teu sonho
para que tu me dissesses:
para este poema não há palavras
Ø Negro gato
se eu fosse um gato
teria sete vidas
daí deixaria de temer a morte
correria todos os riscos
teria em cada vida um único e grande
amor
até um dia sumir
pra depois voltar arisco e mudado
seria perigoso e procurado
teria histórias de amargar
e todos quereriam minha pele para
tamborim
mas sou apenas homem enfim
e meu trabalho é bem maior
viver todas as vidas numa só
Ø Fêmea
as tuas ancas o princípio de tudo
o teu peito o princípio de tudo
a tua vagina o princípio de tudo
em ti me acabo todo!
Ø Para ser caluniado (ou não)
beijo ao contrário
tua língua e lábios
no meu falo
minha língua
nos teu grandes e pequenos lábios
Ø Poema para um só fôlego
parado
calado
preso
perdido
pronto
e acabado
ferido
a ferro
e fogo
fodido
e mal pago
prato
cuspido
e cagado
desiludido
cansado
corpo
caído
partido
morto
e enterrado...
você não se cansa disso?
***************
Ø façamos nós um jogo
tu com teu olhar de medusa
transmutaras a pedra em carne
e eu com o meu toque de Midas
transmutarei a carne em fogo
***************
Ø hoje eu não quero nada
pois chegou o inverno
e eu vou ver a chuva
quero vê-la retardar
a pressa dos carros
e parar os passos dos pedestres
a caminho do trabalho
quero vê-la convidar os meninos à rua
e quem ainda dorme ao agasalho
hoje eu não quero nada
nem o amor
quero apenas fechar os olhos
abrir os braços
e sentir a vida lavada
de vento e água
Ø Poema tempo
o tempo não dá tempo
o tempo não tem hora
a hora de vir
já é o tempo de ir embora
ao tempo que se esvai
não há tampa
amanhã será roto
o que hoje é pura pompa
o tempo no rosto
se estampa
como na pedra a onda
o tempo não tem pressa
mesmo o que leva tempo
o tempo leva
não há relógio que meça
o tempo que tem o tempo
o tempo é eterno como o ar
a vida como o vento
por isso me faça pássaro
meu vôo é o momento!
Ø Declaração platônica
como Platão diria
de todo serei metade
da metade de tua heresia
o gozo inteiro
os corpos em confusa harmonia
minha boca metade do teu peito
minha língua metade da tua
minhas mãos metade das tuas curvas
minha fúria metade da tua vulva
meu corpo no teu
feito mão e luva
Ø O gozo
dois corpos carpe dindo-se
eu carnaval sobre tuas curvas
(todo festa entre tuas frestas)
oh santas carnes sem culpa
uma carne na outra
cavado o gozo feito catapulta
Ø Poema sem nome
este que labora e pensa
palavra por palavra
não é o que sou
neste (em que me desfaço)
apenas me disfarço
o que sou
e em mim amo
não tem nome
é pura sede
pe pura fúria
e pura fome!
***************
Ø eu poderia te dar meu sobrenome
minha aliança e meu corpo
mas seria tudo em vão
dos outros nada fica de nosso
a não ser a impressão
P.S.: No original segue o poema “Último desejo”, já postado anteriormente no livreto “MARSUPIAL”
Ø Para Bachelard
o poema existe
para que não se diga
que a lua é só satélite
e o dia sacrifício
e as flores só adorno
para que não se diga
que a água é só água
e que o poema é só palavra
e que a palavra é só palavra
o poema existe para
devolver a vida à vida
e o sonho à matéria
Ø Poema para Porto Arthur em plena preamar
a onda encontra a parede
que devolve a onda
que num estrondo
encontra outra onda do mar
tudo é sede
de se encontar
Ø na primeira vez em que quis
mudar o mundo
me fodi
depois de novo... e de novo... e de novo
ainda ontem fui mais uma vez derrotado
e mais uma vez pensei
tudo acabado...
tudo acabado...
mas quando tudo parece já estar acabado
cá estou eu de novo
disparando flores e facas
pra todos os lados
ficha técnica
tudo: clei.
POEMAS DE AMOR
PARA TEMPO DE GUERRA
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
Dedicado aos que amam e aos que lutam
Ø Para que explodir bombas?
Dividir línguas?
Antes a vida ávida
As línguas unidas
(saliva com saliva)
a ogiva do peito
(explodindo)
sob a blusa
antes o sangue que ferve
ao que coagula
antes o esperma
o espasmo do gozo
à convulsão do corpo
quando algo o mutila
antes a luta que funde
membro e vagina
antes a carne na carne
à mira de uma artilharia
antes a guerra outra
(ó guerra santa)
que nos ensina:
precisar de armas é ser inerme;
no tatame da cama
mais ganha
quem mais serve!
Ø Poema para uma guerra em tempos de democracia
I
outrora fora a flor atômica
a bomba cínica
agora na democracia
é a guerra clínica
outrora na boca não havia palavra
ao que o olho em volta via
mas agora é uma nova guerra
e uma nova língua
e o que outrora se soubera cova
em linguagem nova
é guerra preventiva
é agora colateral o efeito
do outrora feito morticinal
agora
tudo é refeito
ao inimigo
o fogo-fátuo
ao aliado
o fogo amigo
II
outrora se soubera:
guerra é guerra
morte é morte
ferida é ferida
mas são estes outros tempos
e agora tudo é uma questão de ponto de vista
pois pela democracia
pode-se até apoiar um tirano
e em nome da democracia
depois destituí-lo
e ao povo massacrá-lo
por segurança persegui-lo
pela liberdade vigiá-lo
outrora fora a carnificina
mas agora como um filme
pelo filtro da tela fria
o rosto já não fica atônito
o morto já não fica pútrido
e o sangue já não é trágico.
III
agora
em plena democracia
só o poema grita
mas ele não aparece na imprensa
não dá entrevista
nem é palavra de especialista
não influencia na bolsa
nem muda pesquisa
ele é só poema
e só o poema
outrora como agora
é fratura exposta
na palavra em carne viva
Ø Um desses dias... milagres
milagre
Deus não tem nada haver com isso
Milagre é
num desses dias
(apesar de tanta bomba
e tanta lida)
eu te arrancar um sorriso
milagre é
num desses dias
(apesar de tanto decreto
tanto problema
tanto concreto)
tu me arrancares um poema
Ø Poema chuva
eu escrevo o poema chuva
para que chova a palavra
que lava o que
a vista do homem turva
eu escrevo o poema chuva
pela chuva de lágrimas
sob a chuva de balas
no meio de um “S”
de assassinas curvas
eu escrevo o poema chuva
com quem saliva
pela vida nova
que sobre a fome viva
cai como uma luva
eu escrevo o poema chuva
a palavra chave
que fecha e dura
palavra indigente
e abre e lavra
a pura palavra GENTE!
****************
Ø jurunas
timbiras
tupinambás
pariquis
mundurucus
maguaris
tamoios
onde?
Ø Kaygang e Pataxó
o homem está roto
um corpo estatelado
um morto como um porco
um índio executado
o homem está roto
um índio incendiado
um rosto estarrecido
um corpo estorricado.
Ø Poema quase outro
Mais um pouco eu era muito
Mais que muito eu era todo
Mais que todo eu era tudo
Mais que tudo que é roto
Mais que tudo que é parco
Mais que tudo que é morto
Mais um pouco eu era santo
Mais que santo eu era torto
Mais que torto eu era um bardo
Mais um pouco eu era outro.
***************
Ø hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
terceto e quarteto no soneto
decassílabo metrificado
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
já não vou beijar quem não conheço
só fico com quem for namorado
hoje eu começo do começo
só se for no civil papel passado
antes comprar vou ver o preço
e cotação do dólar no mercado
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
vou deixar na porta o endereço
a sala e os quartos arrumados
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
vou sorrir sempre com apreço
com licença sim muito obrigado
hoje eu começo do começo
deveria já ter começado
mas tudo se vira pelo avesso
quando me penso civilizado.
Ø Eu sozinho
fora de área
fora da rede
fora da cena
fora de casa
fora de campo
fora de foco
fora de mora
fora daqui
fora de mim
sozinho
(no mundo)
Ø Igarité
lenta vaga
a igarité
onda
por
onda
manso diálogo
entre vento e vela
doce carícia
entre quilha e água
e entre o rio e o céu
no meio da preamar
as vagas são as asas
das águas querendo voar
e as cristas das ondas
são plumas de espumas
se erguem se curvam
e se sabem quebrar
e sob o peso
do tempo da vaga do vento
e da vela
o tempo se verga
Ø Angustia antiplatônica
para bem falar a
gramática
para governar
a política
para legislar
a república
para bem estar
a polícia
o poema para quê?
--
ficha técnica
quase tudo: Clei.
Poeta e letrista paraense, professor graduado (bacharelado e licenciatura) em letras pela Universidade Federal do Pará.
(Poemas extraídos na íntegra de publicações do autor)
ANTITEMPLO
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
Ø Pro Evandro
antes um tapa cheio de ódio
que um beijo vazio de paixão
Ø Antitemplo
quando ando nessas ruas
por todos abandonadas
em madrugadas sem céu e sem lua
nem Deus nem Diabo nem nada
eu me sinto num antitemplo
onde o tempo escorre calado
num compasso de ritmo lento
só o vento vagueia ao meu lado
nem puta ladrão ou assassino
encontro nesse meu caminho
só encontro num canto um mendigo
mesmo ele está acomodado
veio aqui pra ser esquecido
não ser no seu sonho incomodado
o mundo se encontra dormindo
só eu perdido e acordado
se de repente uma chuva aparece
não é de lua cheia que lava
é uma magra e longa que desce
feito a dor de uma lua minguada
neste antitemplo comungo
com os gatos e o camundongos
e com as almas penadas que vejo
e vendo-as assim as invejo
pois não carregam do corpo
o peso.
****************
Ø no meu corpo jogam
a erosão e eros
num espamo
o agora já era
efêmera carne
reGALA-se a fúria
ante a vigília dos corvos
ejaculo
e tudo é já
coágulo
Ø O Espelho
ela ante o espelho
olha-o olho no olho
reflete o seu conselho
O EVANGELHO É O NOVO
o tempo para o espelho
é um tosco espantalho
ou corvo curvo e velho
com olhos de grande escárnio
jogo de versa e vice
o ser assim invertido
a essência na superfície
por dentro apenas vidro
mas um dia afinal
uma dúvida angustiante
foi crescendo em sua mente:
se um era quente
o outro era frio
se um era gente
o outro era só vidro
então naquele instante
sentiu-se ela perdida
qual era o real?
qual só refletia?
teve ela um repente
como quando a gente sente
que se está bem diante
daquele que nos mente
foi um soco um estrondo
e sete anos de azar
mas o espelho se quebrando
pode ainda se vingar
eram cacos e um vermelho
confundidos no espaço
não suportou ela ao vê-lo
também ver-se em estilhaços.
Ø Esboço
para Alê
em desvelar-te
toda escrita é risco
e por ti me arrisco
os braços abertos ante o abismo
em reter-te na retina da página
está todo o meu esforço
mas no dizer o indizível de tua carne
todo verbo é apenas esboço
tocar neste teu mistério
com o peso das palavras
é atirar pedras
no escuro do poço
****************
Ø vejo a grávida
nela
duas vidas umbiligadas
casa de invisíveis vigas
que de dentro pra fora
se faz erguida
mas não uma casa reta
sólida
masculina
e sim outra
de formas curvas
fêmeas
LÍQUIDAS
mãe e cria
mais que o mar
no peixe emaranhado
mais que o aconchego de uma casa
em noite de chuva
morador e morada enamorados
como se enamoram mão e luva
Ø Inverno
para Ruy Barata
a cor que não grita
a luz que não cega
o dia apenas
sugerido
sobre o céu cinza
apocalíptico
um sol elíptico
seu silêncio anunciava:
ela vem vindo
vagas no cais se atiram
e o vento cavalga na avenida
anunciando o vaticínio:
ela vem vindo
ei-la caindo
vociferando a voz
de um deus já quase extinto
lua líquida língua
é muda aos ouvidos desumedecidos
e seca aos impermeabilizados espíritos
chuva
multivozes que gritam em coro uníssono
evocam outros tempos
uma outra infância
ameaçam consumar
uma profecia de vingança:
transformar o concreto em líquido
afogam-se cérebros
afunda-se o asfalto
rio e rua de novo unidos
transborda-se a velada náusea
a cidade assim em si vomita
e no gosto do esgotos
lava seu rosto
dos franceses eufemismos
-chuva-
naufraga
ainda que por um instante
o inferno moderno
no inverno de dantes
Ø Rio rumor
para Raul Bopp
o rio sabe
(quem dera todo homem o soubesse)
o não saber
(quando um encontro acontece)
a margem onde se termina
e o outro começa
o rio sabe
(todo homem o soubesse quem dera)
que o ser é a água do agora
mas que é também
a do que há de vir e a do que já fora
o rio sabe também do homem
para quem o rio é afinal
só água entre duas margens sobre um perau
contra esse homem, sabe ele
que sob a sua pele
morna e macia
o olho do invisível
espreita a vagina do dia
o rio sabe desse homem
que não sabe
que um rio sempre
retorna à nascente
como encontra a outra ponta
a boca da serpente
o rio sabe
em sua lenta luta
que um rio também fala
e se faz ouvir
no que cala
no que nega
no que não se navega
na água que se amarga
no milagre que não se pesca
para além das horas de heráclito
o rio
(viajante e estrada)
sob a vulva da madrugada
é eterna e noturna norato.
Ø Um caminho no caminho da pedra
Para as grandes pedras do sul do Pará
não quero o caminho
e seu sim fácil
frágil
flácido
quero a pedra
o não que nela habita
o risco do tropeço
ou do itinerário interdito
quero o não da pedra
que
(pra além das vias)
no meio da pedra há um caminho
penetrar o iné/dito
como ter o sim de um mulher difícil
****************
Ø eros e thanatus
o amor amortece a morte
o amor tece a morte
a morte amor tece
--------------- xxxxxxxxxx ---------------
MARSUPIAL
>> Publicação: ABUSO Produções – Editor: MARCELO MARAT (Travessa Lomas Valentinas, 1839, Marco, Belém-PA – 66087-440)
Ø O cio da sede
a sede ensina
o caminho das águas.
Ø Antibomba
O poema é uma antibomba,
Palavra-ave louca, suicida.
O risco não é não matar ou não fazer ferida,
O risco é não inventar novos mundos
E novas vidas.
Ø Amorumano
Fosse eu um deus
Ou um vampiro
Diria:
O meu amor por ti
É pela eternidade afora;
Mas o meu amor é de homem
E nele tudo grita:
Agora!
Agora!
Agora!
Ø Poema para minha miopia
Meu olho luta com a luz
ela quer o mundo claro
ele não
e entre o claro e o escuro
já não me desespero
miopia
é devolver ao mundo
o mistério.
P.S.: No original segue o poema “antitemplo” (já postado no livreto homônimo), ilustrado numa HQ com desenho de E. Thomaz e roteiro de M. Marat, o que, futuramente, se encontrará devidamente postado neste blog.
Ø Poema para minha fraca memória
sempre que eu te reencontrar
e não lembrar de ti
faça como eu que não me ofendo
nem me desaponto
pense que emoção toda vez
ser o nosso primeiro encontro.
Ø Carnívoro
este corpo e estes olhos
que um dia a terra há de comer
ainda hão de comer muitos corpos.
****************
Ø toda palavra é puta
o poema a todos se dá
mas poucos ele beija
na boca.
Ø Cacos
um copo pela metade
numa mesa abandonado
um poema inacabado
cinzas e baganas num cinzeiro
uma foto amarelada
uma carta no fundo da gaveta
quanta tragédia desenganada.
Ø Último desejo
todo beijo que seja
com a força do derradeiro
pois a morte se esconde na vida
e os beijos (desde o primeiro)
já escondem consigo a despedida.
EROSÃO DAS HORAS
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
dedicado
a Aquiles e Ícaro
Ø Auto-retrato
sou estúpido
violento
fui forjado nas matilhas
por isso caminho por entre as flores
preciso aprender das suas ternuras
Ø Poema para o sonho de uma amiga
o sono esconde o sonho
velado pela volúpia
a pele por fora
em repouso
o devaneio por dentro
em movimento
e gozo
eu feito louca vaga
indo e vindo
indo e vindo
sobre tua vulva
estrondo e espuma
entre tuas coxas
mundo tumulto de línguas
confusão de salivas
suores
arfares
odores
morna e úmida fúria
das carnes em luta
mas a noite se esvai no dia
o sonho evanescido
o corpo acorda lívido e ávido
como se tudo tivesse havido
Ø Sonho
nada de sonhos fáceis
nem sonhos fósseis
só será sonho este que faço
no verso e no braço
sobre esses dias difíceis
Ø Poema extraído de uma afronta
não olho
(que não sei só olhar)
não falo
(que não sei só falar)
não toco
(que não sei só tocar)
se não for para ser tudo
me deixe só...
quieto...
mudo
Ø 2º poema para o sonho de uma amiga
tu me disseste que para o sonho
que tiveste comigo não há poema
quer dera eu fizesse um poema
da mesma matéria do teu sonho
para que tu me dissesses:
para este poema não há palavras
Ø Negro gato
se eu fosse um gato
teria sete vidas
daí deixaria de temer a morte
correria todos os riscos
teria em cada vida um único e grande
amor
até um dia sumir
pra depois voltar arisco e mudado
seria perigoso e procurado
teria histórias de amargar
e todos quereriam minha pele para
tamborim
mas sou apenas homem enfim
e meu trabalho é bem maior
viver todas as vidas numa só
Ø Fêmea
as tuas ancas o princípio de tudo
o teu peito o princípio de tudo
a tua vagina o princípio de tudo
em ti me acabo todo!
Ø Para ser caluniado (ou não)
beijo ao contrário
tua língua e lábios
no meu falo
minha língua
nos teu grandes e pequenos lábios
Ø Poema para um só fôlego
parado
calado
preso
perdido
pronto
e acabado
ferido
a ferro
e fogo
fodido
e mal pago
prato
cuspido
e cagado
desiludido
cansado
corpo
caído
partido
morto
e enterrado...
você não se cansa disso?
***************
Ø façamos nós um jogo
tu com teu olhar de medusa
transmutaras a pedra em carne
e eu com o meu toque de Midas
transmutarei a carne em fogo
***************
Ø hoje eu não quero nada
pois chegou o inverno
e eu vou ver a chuva
quero vê-la retardar
a pressa dos carros
e parar os passos dos pedestres
a caminho do trabalho
quero vê-la convidar os meninos à rua
e quem ainda dorme ao agasalho
hoje eu não quero nada
nem o amor
quero apenas fechar os olhos
abrir os braços
e sentir a vida lavada
de vento e água
Ø Poema tempo
o tempo não dá tempo
o tempo não tem hora
a hora de vir
já é o tempo de ir embora
ao tempo que se esvai
não há tampa
amanhã será roto
o que hoje é pura pompa
o tempo no rosto
se estampa
como na pedra a onda
o tempo não tem pressa
mesmo o que leva tempo
o tempo leva
não há relógio que meça
o tempo que tem o tempo
o tempo é eterno como o ar
a vida como o vento
por isso me faça pássaro
meu vôo é o momento!
Ø Declaração platônica
como Platão diria
de todo serei metade
da metade de tua heresia
o gozo inteiro
os corpos em confusa harmonia
minha boca metade do teu peito
minha língua metade da tua
minhas mãos metade das tuas curvas
minha fúria metade da tua vulva
meu corpo no teu
feito mão e luva
Ø O gozo
dois corpos carpe dindo-se
eu carnaval sobre tuas curvas
(todo festa entre tuas frestas)
oh santas carnes sem culpa
uma carne na outra
cavado o gozo feito catapulta
Ø Poema sem nome
este que labora e pensa
palavra por palavra
não é o que sou
neste (em que me desfaço)
apenas me disfarço
o que sou
e em mim amo
não tem nome
é pura sede
pe pura fúria
e pura fome!
***************
Ø eu poderia te dar meu sobrenome
minha aliança e meu corpo
mas seria tudo em vão
dos outros nada fica de nosso
a não ser a impressão
P.S.: No original segue o poema “Último desejo”, já postado anteriormente no livreto “MARSUPIAL”
Ø Para Bachelard
o poema existe
para que não se diga
que a lua é só satélite
e o dia sacrifício
e as flores só adorno
para que não se diga
que a água é só água
e que o poema é só palavra
e que a palavra é só palavra
o poema existe para
devolver a vida à vida
e o sonho à matéria
Ø Poema para Porto Arthur em plena preamar
a onda encontra a parede
que devolve a onda
que num estrondo
encontra outra onda do mar
tudo é sede
de se encontar
Ø na primeira vez em que quis
mudar o mundo
me fodi
depois de novo... e de novo... e de novo
ainda ontem fui mais uma vez derrotado
e mais uma vez pensei
tudo acabado...
tudo acabado...
mas quando tudo parece já estar acabado
cá estou eu de novo
disparando flores e facas
pra todos os lados
ficha técnica
tudo: clei.
POEMAS DE AMOR
PARA TEMPO DE GUERRA
(Livreto artesanal de produção e publicação independente)
Dedicado aos que amam e aos que lutam
Ø Para que explodir bombas?
Dividir línguas?
Antes a vida ávida
As línguas unidas
(saliva com saliva)
a ogiva do peito
(explodindo)
sob a blusa
antes o sangue que ferve
ao que coagula
antes o esperma
o espasmo do gozo
à convulsão do corpo
quando algo o mutila
antes a luta que funde
membro e vagina
antes a carne na carne
à mira de uma artilharia
antes a guerra outra
(ó guerra santa)
que nos ensina:
precisar de armas é ser inerme;
no tatame da cama
mais ganha
quem mais serve!
Ø Poema para uma guerra em tempos de democracia
I
outrora fora a flor atômica
a bomba cínica
agora na democracia
é a guerra clínica
outrora na boca não havia palavra
ao que o olho em volta via
mas agora é uma nova guerra
e uma nova língua
e o que outrora se soubera cova
em linguagem nova
é guerra preventiva
é agora colateral o efeito
do outrora feito morticinal
agora
tudo é refeito
ao inimigo
o fogo-fátuo
ao aliado
o fogo amigo
II
outrora se soubera:
guerra é guerra
morte é morte
ferida é ferida
mas são estes outros tempos
e agora tudo é uma questão de ponto de vista
pois pela democracia
pode-se até apoiar um tirano
e em nome da democracia
depois destituí-lo
e ao povo massacrá-lo
por segurança persegui-lo
pela liberdade vigiá-lo
outrora fora a carnificina
mas agora como um filme
pelo filtro da tela fria
o rosto já não fica atônito
o morto já não fica pútrido
e o sangue já não é trágico.
III
agora
em plena democracia
só o poema grita
mas ele não aparece na imprensa
não dá entrevista
nem é palavra de especialista
não influencia na bolsa
nem muda pesquisa
ele é só poema
e só o poema
outrora como agora
é fratura exposta
na palavra em carne viva
Ø Um desses dias... milagres
milagre
Deus não tem nada haver com isso
Milagre é
num desses dias
(apesar de tanta bomba
e tanta lida)
eu te arrancar um sorriso
milagre é
num desses dias
(apesar de tanto decreto
tanto problema
tanto concreto)
tu me arrancares um poema
Ø Poema chuva
eu escrevo o poema chuva
para que chova a palavra
que lava o que
a vista do homem turva
eu escrevo o poema chuva
pela chuva de lágrimas
sob a chuva de balas
no meio de um “S”
de assassinas curvas
eu escrevo o poema chuva
com quem saliva
pela vida nova
que sobre a fome viva
cai como uma luva
eu escrevo o poema chuva
a palavra chave
que fecha e dura
palavra indigente
e abre e lavra
a pura palavra GENTE!
****************
Ø jurunas
timbiras
tupinambás
pariquis
mundurucus
maguaris
tamoios
onde?
Ø Kaygang e Pataxó
o homem está roto
um corpo estatelado
um morto como um porco
um índio executado
o homem está roto
um índio incendiado
um rosto estarrecido
um corpo estorricado.
Ø Poema quase outro
Mais um pouco eu era muito
Mais que muito eu era todo
Mais que todo eu era tudo
Mais que tudo que é roto
Mais que tudo que é parco
Mais que tudo que é morto
Mais um pouco eu era santo
Mais que santo eu era torto
Mais que torto eu era um bardo
Mais um pouco eu era outro.
***************
Ø hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
terceto e quarteto no soneto
decassílabo metrificado
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
já não vou beijar quem não conheço
só fico com quem for namorado
hoje eu começo do começo
só se for no civil papel passado
antes comprar vou ver o preço
e cotação do dólar no mercado
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
vou deixar na porta o endereço
a sala e os quartos arrumados
hoje eu começo do começo
vou deixar de ser improvisado
vou sorrir sempre com apreço
com licença sim muito obrigado
hoje eu começo do começo
deveria já ter começado
mas tudo se vira pelo avesso
quando me penso civilizado.
Ø Eu sozinho
fora de área
fora da rede
fora da cena
fora de casa
fora de campo
fora de foco
fora de mora
fora daqui
fora de mim
sozinho
(no mundo)
Ø Igarité
lenta vaga
a igarité
onda
por
onda
manso diálogo
entre vento e vela
doce carícia
entre quilha e água
e entre o rio e o céu
no meio da preamar
as vagas são as asas
das águas querendo voar
e as cristas das ondas
são plumas de espumas
se erguem se curvam
e se sabem quebrar
e sob o peso
do tempo da vaga do vento
e da vela
o tempo se verga
Ø Angustia antiplatônica
para bem falar a
gramática
para governar
a política
para legislar
a república
para bem estar
a polícia
o poema para quê?
--
ficha técnica
quase tudo: Clei.